quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Ligações

Lembro-me de ter chegado em casa depois de um dia longo e chato. Joguei a mochila na cama e fui tomar um banho, eram 23:15 da noite e eu só queria sentir a água gelada escorrendo pelo meu corpo tenso e sem vida, numa tentativa de relaxar. Eu estava vivendo um caos, tanta coisa para fazer, tantos problemas a resolver, era como sentir a vida escorrer entre os dedos e não conseguir vivê-la. E enquanto eu me perdia no emaranhado de pensamentos, ouço meu celular tocar. Era você. Depois de quase cinco meses sem dar noticias, depois de desaparecer do mapa. Sim, era você. Eu não sabia se atendia ou se te ignorava como algo qualquer. Você não para de ligar, eu reluto contra minha própria vontade de ouvir tua voz outra vez, não é justo. Atendo.

– Alô? -  Ouço a voz do outro lado da linha.

Como se fossem sentimentos represados, as palavras não se dignam a sair. Sou só eu e o silêncio. O meu silêncio. Ele insiste:

– Luiza, eu sei que você está aí. Posso ouvir sua respiração. Responde, por favor.
– OI. – Digo, indiferente.
– Luiza, eu preciso falar com você.
– Ah, e só percebeu isso depois de cinco meses? – Pergunto, indignada.
– Por favor, preciso mesmo falar com você.
– Não sei se quero.
– Não faz isso, por favor.
– O que droga você acha que está fazendo, Bernardo? Não é justo! – Pergunto, enquanto tento me vestir.
– Lu... estou em frente ao teu prédio, preciso mesmo conversar com você! – Penso durante alguns segundos sem saber ao certo o que fazer, mas acabo cedendo.
 Tá... Sobe. – Desligo o celular.

Sento no braço do sofá enquanto espero a campainha tocar.

Estou apreensiva, corro meus olhos pelos cantos da sala e tento ignorar a bagunça. Além do mais, quem está subindo até esse apartamento é ninguém menos que Bernardo. Ele é a última pessoa que se importaria com essa bagunça. Aliás, com qualquer bagunça. Temos a capacidade de obliterar o que está a volta. Mas faz cinco meses. Posso acreditar que ele continua sendo a mesma pessoa desleixada de sempre. A mesma pessoa dos primeiros anos de amizade, dos primeiros beijos hesitantes e das confidências proferidos entre risos e lágrimas. É apenas o Bernardo. A campainha toca. Respiro fundo e caminho em direção a porta.

– Oi. – Diz ele, olhando para a minha camisa enquanto dá um sorriso de lado.
 O quê? - Pergunto, sem entender o motivo do sorrizinho.
 Ah, então foi aqui que eu esqueci a minha camisa?

Então, eu olho para baixo e... Merda! Eu estava usando a camisa que ele deixou aqui em casa há alguns meses. Foi algo meio inconsciente, fazia umas três semanas que eu tinha começado a usá-la, e justo hoje, logo hoje, ele aparece. 

– Foi a primeira que encontrei, nem percebi que era essa. – Tento disfarçar. 
– Vai me convidar para entrar? - Ele pergunta, me olhando fixamente nos olhos.
– Entra. – Abro espaço para ele passar, fecho a porta e caminho em direção ao sofá. Ele se senta no mesmo sofá que eu estou, mas um pouco distante de mim. Eu o observo, enquanto ele apoia os cotovelos nas coxas e cruza as mãos. Eu sei que ele bebeu antes de vir aqui, mas prefiro não comentar sobre. Ele olha fixamente para o chão. Estamos em completo silêncio. Eu continuo olhando para ele.
– Desculpa aparecer aqui tão tarde, eu precisava muito te ver. - Diz ele, sem olhar para mim.
– Eu não entendo, Bernardo... – Digo, enquanto olho para ele.
– Eu sei. Te devo explicações. Sei que fiz merda e me odeio por ter feito isso logo com você.

 Ele insiste em não me olhar, mas  segue falando:

– Aconteceram algumas coisas lá em casa, não te contei antes porque não quis te envolver nesse lance, senti vergonha de contar.

Eu continuo olhando para ele, tento entender o que houve, mas Bernardo sempre foi muito fechado em relação a família, não que isso justifique o sumiço, mas no fundo, por mais que eu odiasse assumir, eu o entendia.

– Mas você é a única pessoa que eu confio Luiza, por isso estou aqui. Sei que não é justo depois de tanto tempo aparecer assim, mas eu fiz merda, e não há ninguém que me entenda mais que você.
– Me conta o que aconteceu.  Digo, apreensiva.
– Eu sei que não tenho o direito de chegar assim do nada, ainda mais no estado em que estou. Mas eu não sei o que fazer, Lu. Não sei mesmo. Antes de sumir, estavam acontecendo algumas coisas lá em casa, meu pai estava envolvido em um escândalo de corrupção na empresa que ele trabalhava e acabou sendo demitido, ele está respondendo por vários processos na justiça e de lá pra cá ele passou a beber muito.  Por várias vezes tive que presenciar discussões dele com a minha mãe, mas chegou a um ponto em que ele começou a agir de forma mais violenta e em uma dessas discussões, ele a agrediu e dessa vez eu não pude simplesmente ignorar, parti pra cima dele e tivemos uma briga feia. Minha mãe, por sinal, ficou do lado dele e me expulsou de casa, eu ainda tentei convencê-la a vir comigo, mas ela preferiu ficar com ele. Eu ainda pensei em te procurar, juro que pensei, mas seria egoísmo da minha parte jogar mais uma  carga sobre você, que na época estava tão envolvida com a tua faculdade, o emprego e o lance dos teus pais também. Então, eu só peguei a mochila, os meus documentos e parti no primeiro voo para Portugal, fiquei em um hotel perto da casa daquele meu amigo que te apresentei no dia da minha formatura. 

E nesse momento ele já estava olhando direto para mim. Seu olhar não vacilava. Poucas vezes ele tinha sido tão direto em relação a sua família. Geralmente, ele mudava o rumo da conversa ou dava respostas vagas. Então, eu não insistia muito. Podíamos ser íntimos e tudo, mas, para essa questão, ele não cedia espaço.

– Nesse meio tempo, eu sempre ligava para ela, para saber como estavam as coisas por aqui. Mas depois de algum tempo ela passou a não me atender mais, fiquei preocupado e decidi voltar. Quando cheguei, encontrei a casa entregue a silêncios. Rita me recebeu. Ficou surpresa quando me viu. Eu não tinha avisado que voltaria. Mas a surpresa me pareceu exagerada. Ela me conhecia desde criança. diria até que foi ela que me criou. Minha mãe teve depressão pós-parto. Cresci no quarto da babá. Rita me tinha como filho. Deveria mesmo era estar feliz por me ver. Então, eu perguntei onde estava minha mãe, o motivo de ela não retornar minhas ligações. Rita me disse que ela estava indisposta e que não queria que a incomodassem. Subi a escada correndo. Sabia que havia algo errado. Quando abri a porta minha mãe colocava o robe, e antes que a seda cobrisse seus ombros, pude ver marcas horríveis. Multicolores. Ela arregalou os olhos e toda irritada pediu que eu saísse. Mas eu me recusei. Insisti que ela me dissesse a verdade. Ela sentou à beira da cama e começou a chorar convulsivamente. Eu me ajoelhei de frente para ela e perguntei aonde ele tinha ido. Ela só balançava a cabeça. Dizia que estava bem, que tudo ia ficar bem. Mas era sempre a mesma história. Sempre a mesma promessa. Dessa vez iria ser diferente. Eu não deixaria barato. Sai de casa e peguei o primeiro táxi que apareceu. Eu sabia onde ele estava. Um bêbado. Um covarde. A raiva me corroía. Pedi para que o motorista parasse. Joguei o dinheiro e não esperei o troco. Fiquei parado na esquina. Ali estava o bar. Eu observava de longe. Ele ria alto e erguia o copo para cima, como se nada tivesse acontecido.

Os olhos de Bernardo estavam vermelhos. Olhos tão azuis cheios de raiva e de uma profunda tristeza. Ele continuava com sua história. Dizia como agrediu seu pai até deixá-lo num estado de semiconsciência. Disse que seguiu pelas ruas sem rumo com espírito em suspenso. Disse que ficou no nosso bar. Um bar que íamos com nossos amigos. Ele disse que não bebeu muito, mas estava óbvio que não era verdade. Agora ele está aqui na minha frente. E eu não sabia o que dizer. Eu não esperava nada disso. Eu posso parecer forte por fora. Sempre lutei para construir essa persona. Para construir toda essa independência. Quando sai de casa, há alguns anos, posso dizer que foi mesmo uma fuga. Minha mãe sempre traia meu pai com outros caras, e eu sabia de tudo, mas fingia que não. Eu amava meu pai, ele era meu melhor amigo, nossa relação era realmente incrível. Mas depois de anos lutando com uma doença no pulmão, ele morreu. O elo que unia a família se foi. As coisas ficaram estranhas, minha mãe nunca se importou comigo, eu cansei de vê-la chegar bêbada às duas da manhã gritando pela casa o quanto me odiava, e acabei saindo de casa aos 16 anos. Eu não era a melhor pessoa para falar sobre relacionamento familiar, por isso não podia tomar aquela situação para mim. Mas agora estou aqui, Bernardo me encarando, esperando alguma resposta, algum entendimento. Eu olhava para ele sem saber ao certo o que dizer, mas eu não conseguia pensar em nada.

 Eu não sei o que dizer, Bernardo... eu realmente não sei. Me desculpa.  Digo, enquanto ele me olha.

 Eu sei, Luiza. Nunca te falei nada a respeito dos meus pais e de repente jogo essa bomba sobre você. Eu que te devo desculpas.  Ele diz, cobrindo o rosto com as mãos.

Ele começa a chorar, eu não sei o que fazer. Nunca o vi dessa forma antes. Eu só me aproximo e o abraço. Ele chora compulsivamente, enquanto balbucia algumas frases que não consigo entender.

– Vai ficar tudo bem, Bê... vai ficar tudo bem. – Dou um suspiro profundo. Abraço-o forte. Sinto-o em meus braços.

Dois despedaçados tentando sobreviver ao caos. Sempre foi assim, um segurando os pedaços do outro, um carregando a dor do outro. E mesmo que ficássemos anos sem nos falar, estamos ligados de alguma maneira absurdamente estranha e bonita. Acho que é isso que a dor também faz, une corações.