sexta-feira, 20 de maio de 2016

Não me pergunte se é ficção

Eram exatamente 10:25 da manhã de uma sexta-feira, eu tinha acabado de acordar depois de um pesadelo horrendo. Fazia umas duas semanas que eu estava tendo o mesmo sonho, mas não tive coragem de contar a ninguém, pois sou o tipo de pessoa que prefere guardar toda a dor para si mesma, nada pessoal, só costume mesmo. Continuei deitada na cama, pensando se haveria alguma razão ou sentido nesses pesadelos, já que estava começando a me incomodar e eu não sabia bem o que fazer nem se ia parar depois de um tempo, até que alguém entra no quarto e interrompe meus profundos pensamentos. Era meu pai.
— Levanta, preciso que vá comigo a um lugar.
— Que lugar? — pergunto eu, indignada por tamanha falta de modos.
— Levanta logo, menina!
Levantei, e sem fazer mais perguntas fui para o banheiro lavar o rosto. Depois voltei pro quarto e procurei uma roupa qualquer, mas acabei pegando uma camisa preta que estava jogada no chão e um short que estava na cadeira. Meu quarto estava uma zona.
— Pode me dizer para onde vamos? — perguntei, mesmo sabendo que o diálogo nunca existiu entre nós.
— Sua mãe quer que você faça não sei o que pra ela.
Não é possível, depois de dezoito anos ela continua me procurando só por interesse, impressionante como algumas coisas nunca mudam.
— Só pra isso que eu sirvo mesmo, né?
— Só pra isso o quê? — ele pergunta enquanto me olhava procurar a porcaria de um prendedor de cabelo que achou de se perder.
— Ela só me procura quando precisa de alguma coisa.
— Diga isso pra ela, não pra mim. — responde ele com um tom de voz altivo.
Eu nunca entendi bem a relação que eles tem, já que ela sempre fez ele de trouxa. Vai ver para ele o amor é isso: ser feito de trouxa. Prendi meu cabelo e fui caminhando em direção a porta sem dizer uma só palavra. Ele segue empurrando uma bicicleta e eu procuro no meu celular uma boa música para fugir dessa realidade.
— Que cara emburrada é essa? — pergunta ele, como se não soubesse o real motivo.
— Esquece. — respondo.
— Diga isso para ela quando chegar lá.
— Deixa isso pra lá.
— Como vai na igreja?
— Pai, não precisa fazer isso.
 — Isso o quê?
— Fazer perguntas idiotas pra mostrar um interesse que você não tem.
— Deixa de ser ignorante, menina. — diz ele, como quem se importa.
Não respondi mais nada ao longo do caminho. Ficamos em uma esquina esperando a outra pessoa aparecer, acho que demorou uns 5 minutos, até eu avistá-la vindo em nossa direção. Meu pai se levantou e eu continuei sentada com o meu fone de ouvido.
— Sua filha tá com raiva aí — diz ele num tom de voz debochado. Depois sai em sua bicicleta, me deixando ali com a última pessoa do mundo em que eu queria estar.
— Com raiva de mim? O que eu fiz dessa vez? — Mais um tom de voz debochado.
Me levantei sem olhar para ela e sai andando sem saber direito para onde.
— O que você quer dessa vez? — pergunto eu, com um nó na garganta.
— Quero que vá comigo a um lugar.
— Pode me dizer que lugar é esse? — continuo sem olhar para ela.
— Quero te mostrar para um... amigo meu.
 Não acredito que fui arrancada da cama para ela me mostrar a um amigo. Parei de andar e suspirei fundo, indignada com tamanha falta de noção daquela mulher. Ela estava fazendo de novo, mostrando a "filhinha bem criada e bonita" para outro cara que provavelmente era mais um que estava transando com ela.
— Eu não acredito nisso — digo eu, olhando finalmente nos olhos dela.
— O que foi, filha?
— Filha? Não me chame de filha, você não tem esse direito.
— Não tenho porquê? Sou sua mãe, esqueceu?
— Seria, se tivesse feito esse papel. Mas quem esqueceu alguma coisa aqui foi você, não é?
— O que eu fiz para você me tratar desse jeito? Foi alguma coisa que alguém falou?
— E precisa alguém falar alguma coisa? Não sou idiota, sei bem quem você é.
— Eu não entendo por que tanta revolta, o que eu fiz?
— A pergunta é: O que você não fez? Quer mesmo que eu responda?
— Responda, porque eu sinceramente não sei o que fiz de tão grave pra você me odiar tanto.
— Eu não consigo entender porque eu ainda fico impressionada com você, com a sua falta de noção. Você some por dezoito anos, nunca nem se importou em perguntar se eu estava viva, só aparece quando precisa de algum favor, e ainda pergunta o que você fez? Me poupe.
— Olha aqui sua pirralha ingrata, veja como você fala comigo! — diz ela, segurando meus braços com toda a força e me chacoalhando.
— Me solta! — tento tirar as mãos dela de mim.
— Você acha que pode falar assim comigo? Você só tem tudo que tem hoje graças a mim.
— Graças a você? — dei uma risada. — Graças a você um cacete. Você acha que eu não sei o que fazia comigo quando eu era uma criança? Pois saiba que sei de tudo. E não vá pensando que esqueci as coisas horríveis que você já fez comigo e com os meus irmãos. Se hoje tenho tudo que tenho não é graças a você, nunca foi. 
— E quem te contou tudo isso, em?
— Não importa quem contou, eu só quero que me deixe em paz e suma logo da minha vida de uma vez por todas. — empurro ela para longe de mim e saio andando.
— Volta aqui, espera! — ela sai correndo atrás de mim e me puxa pelo braço.
— Me solta, sua louca.
— Você também não é perfeita, eu sei que cometi erros, mas estou tentando mudar.
— Mudar?  Mandou meu pai ir lá em casa me tirar da cama para você me apresentar o seu novo namoradinho, na tentativa desesperadora de mostrar a ele a boa mãe que você não é. Eu não vejo mudança nenhuma nisso, me desculpe.
— Você não sabe pelo que já passei, não sabe de nada. E outra, eu sou sua mãe, você não pode falar comigo desse jeito.
— Mãe? E onde você estava mãe, quando eu precisei de você? Onde estava nas horas que fiquei doente ou no primeiro dia que entrei pra faculdade? Onde estava, mãe, quando eu perdi todos ao meu redor e me senti completamente sozinha? Onde você estava quando conheci meu primeiro namorado e ele me decepcionou? Onde você estava no meu aniversário quando liguei pra você ir a minha festa e você nem deu noticias? Você pode ter me colocado nesse mundo, mas você estar longe de ser minha mãe. Continue vivendo sua vida egoísta junto com os seus namorados e não me procure mais.
   Eu sai andando depressa de volta para casa, nem sei como cheguei tão rápido ao meu quarto, mas assim que fechei a porta desabei em choro. Nunca chorei tanto em toda a minha vida, eram lágrimas de anos guardadas dentro do peito, um nó na garganta que já estava sufocando foi desatado, finalmente. Era como se meu peito estivesse aberto e todo peso que carreguei por anos, toda dor, rancor, tristeza, decepção, estivesse sendo exposto, bem ali na minha frente dizendo: eu nunca fui embora. E lá estava eu, entre os gritos e soluços que saiam do fundo da minha alma rasgando tudo por dentro,  tentei arrancar toda aquela dor que por anos me tomou inteira. É uma pena que eu tenha falhado.